domingo, 8 de agosto de 2010

Órgão de Tubos Renasce na Matriz das Velas

Em S. Jorge...
Órgão de Tubos Renasce na Matriz das Velas
Por Pe. Manuel Garcia da Silveira, 
Pároco da Igreja Matriz de São Jorge (Vila das Velas)



Dentre o variado e expressivo espólio histórico-cultural desta Região, ocupam posição de indesmentível relevância os chamados órgãos de tubos.

Alcandroados em lugares cimeiros das nossas igrejas - coros altos - ou então em coretos laterais, em jeito de arremedo feito à pressa, estes preciosos instrumentos, revestidos de caixas onde por vezes avultam as talhas douradas e as mais belas motivações de arte barroca, foram durante décadas focos de irradiação cultural e de elevação do espírito.

Ecoando por sobre abóbodas e arcarias dos nossos vetustos templos, os órgãos de tubos foram, através de gerações sem fim, uma presença amiga, o deleite incontido do espírito, a oração cantada, a sinfonia em prece ardente de tantos em união com Deus.

Vitimados pela voragem do tempo e pela incúria dos homens, emudeceram quase por completo, deixando todavia na sensibilidade artística de tanta gente uma saudade pungente...! É que dói imenso vê-los agora calados, eles que foram concebidos e armados com tanto amor para cantar louvores ao Altíssimo, para cantar as belezas da arte, numa palavra, para rezar!

Fazer uma análise histórica sobre a introdução destes instrumentos nesta ilha de S. Jorge, não se nos afigura tarefa fácil. Os elementos não são assim tão abundantes. Todavia, crê-se que as igrejas desta ilha de S. Jorge só tiveram órgão de tubos no século XIX, com excepção honrosa para a Matriz das Velas, Igreja principal de S. Jorge, a primeira que teve órgão, e já no século XVIII, segundo julgamos pela seguinte e elucidativa nota do então Pároco, Rev. Pe. José Silveira Goulart:

"O pequeno órgão que está em S. Francisco - refere a dita nota:
era da Matriz, e foi vendido à Santa Casa da Misericórdia quando da aquisição do órgão actual, em 1865.
Era portanto Provedor o Pe. Lacerda que o comprou por 150$000 reis. Não tinha nome do autor."

Continuando a citar a mesma nota, refere o Pe. Silveira Goulart: "tenho ideia de me dizer o tesoureiro, Victorino José Caldeira que aquele pequeno órgão tinha sido do Convento do Rosário das Freiras desta Vila. Mas a centenária, Vigária daquele Mosteiro - D. Maria Londina - que lá esteve em menina não confirma esta notícia e diz, bem como meu pai que está a fazer 90 anos, que o dito instrumento era mesmo desta Matriz de S. Jorge."

Como é óbvio concluir não é de crer que houvesse no Convento do Rosário uma daquelas peças estando privado dela o principal templo da Ilha e onde havia colegiada.

Refere o Pe. Manuel de Azevedo da Cunha, que temos vindo a seguir nas suas "Notas Históricas", que em 1651 já havia Mestre de Capela na Matriz das Velas, como se vê de um testamento. Havendo Capela, é de crer que houvesse órgão.

Em 1702, exercia aquele cargo o Pe. João Teixeira Ferro. Em 1715, o Pe. Jorge de Sousa Fagundes. Em 1750, o Pe. José Francisco de Azevedo. Em 1767, na ausência do Pe. Azevedo, ocupou o lugar o Pe. Joaquim Furtado de Mendonça, viúvo que foi de D. Joana Francisca da Silveira, ex-noviça do Convento do Rosário desta Vila e de cujo matrimónio nasceram seis filhos, três dos quais sacerdotes.

Reportando-nos à ilação do Pe. Cunha, a partir da existência do Mestre de Capela nesta Matriz para concluir que deveria haver órgão (uma coisa não se compreenderia sem a outra) tem plenamente razão o paciente e incansável investigador jorgense, e pela informação seguinte que reputamos de muito valor:

A 13 de Junho de 1676, no ano a seguir à Dedicação da Matriz de S. Jorge, encontrava-se novamente nesta Ilha, em Visita Pastoral, D. Frei Lourenço de Castro que, investigando minunciosamente esta Igreja Matriz, seus haveres, alfaias litúrgicas e demais pertences, tratando ainda da organização litúrgica da mesma, deixou no Livro 1. das Visitações, folha 35, esta preciosa observação que confirma todas as teses anteriores e, simultaneamente, atesta do zelo pastoral, bem como da solicitude deste santo e venerando Bispo, um dos mais notáveis Prelados que tiveram assento na Santíssima Sé do Salvador de Angra:

"... encomendamos muito ao organista que assista com pontualidade em suas obrigações, e tenha o cuidado de limpar o órgão..."

Daqui se conclui, e sem medo de errar, de que esta Matriz já possui o seu órgão no século XVII, e julgamos mesmo que a partir da primeira metade do mesmo, e até de um realejo, como se depreende de outra nota que encontramos no Livro 1. das Visitações, de 1676, a folha 40, recomendação esta feita pessoalmente pelo referido Bispo: "...mandamos ao Pe. Vigário que à custa do dinheiro que Sua Alteza mandou dar do que estaria para as fortificações mande vir um realejo para o coro da Capela Mor, e à custa da fábrica mande consertar o órgão velho do coro de cima..."  Se o órgão referenciado nesta nota estava velho, carecendo portanto de conserto, era porque acusava o peso de muitos anos, tanto mais que instrumento destes não se estraga em pouco tempo, já que no passado se fazia tudo em qualidade de materiais e em beleza de execução.

Que espécie de órgão seria? Conviria perguntar. Presumimos que fosse um órgão bom, adaptado às necessidades e exigências da época, como é natural, mas um órgão à altura da dignidade das "Igrejas deste Bispado".

A este propósito, convém citar outra nota, não menos importante e que decerto projecte alguma luz sobre o assunto:

A 20 de Fevereiro do ano de 1732, o Licenciado Jerónimo de Sousa Cabral, Vigário Confirmado na Matriz de nossa Senhora do Rosário do Topo, e Visitador Geral das Ilhas do Pico, Faial e S. Jorge, pelo Bispo D. Manuel Alvares da Costa, falando do Coro da Matriz de Velas, deixa exarada, no Livro 2. das Visitações, folha 69, a seguinte nota:

"...é notória a falta que há de um órgão para o Coro desta Matriz, porque o que nela se acha, além de ser muito antigo, está quase de todo defeituoso em forma que causa notável dissonância... que por isso tendo organista com ordenado, que para este efeito lhe tem consignado Sua Majestade, que Deus guarde: pelo que ordeno ao Reverendo Vigário que requeira do dito Senhor mande da (...) para esta Matriz um órgão de oito registos, como os há nas principais igrejas deste Bispado, e o deve haver nesta Matriz...".

Segundo se depreende claramente desta exigência do Visitador, a Matriz de S. Jorge, em Velas, sendo a principal desta Ilha, poderia e deveria ombrear em dignidade com as principais do Bispado na obtenção de um órgão de oito registos. Portanto, não devia ser um modesto instrumento, antes pelo contrário.

O actual órgão desta Matriz, de que nos ocupamos neste trabalho, foi contruído nesta Ilha por um ilustre jorgense, ano de 1865, de nome Tomé Gregório de Lacerda, tio do Maestro e Compositor, Francisco de Lacerda, figura que tanto honrou Portugal e os Açores, por terras eruditas da Europa, no campo musical. Tem, portanto, 125 anos e foi o terceiro dos quatro então construídos por tão hábil filho da Ribeira Seca, tendo custado na época 900$000 reis.

É feito de madeira de casquinha, carolina, jacarandá e câmbala, madeiras exóticas que arribavam então às ilhas ou trazidas do Brasil, fazendo lastro, em barcos que aqui faziam "aguada".

Possui 672 tubos sonoros e 18 registos partidos. A sua estrutura obedece, assim como o da Matriz da Calheta, ao estilo ibérico, enquanto os restantes existentes nesta Ilha evidenciam certas características de estilo inglês.

Fora colocado inicialmente, conforme a praxe do tempo, num coreto lateral, sob a arcada do lado esquerdo, tendo sido posteriormente transferido para o Coro alto em 1897 conforme nota exarada no Livro 4. das Visitações, folha 130.

-----------------------------------------------------------------------------

Fonte:
Revista Insula, de 13 de Junho de 1990.

Agradecimentos:
Pe. Manuel Garcia da Silveira, 
Pároco da Igreja Matriz de São Jorge
(vila das Velas, ilha de São Jorge)


Sem comentários: